A MÃE DE TODAS AS LUZES

A família ficou honrada e Asta sentiu seu mundo ruir ao ser escolhida como candidata À Mãe de Todas as Luzes. Na cerimônia que se seguiu, dados festejos de Inverno, seu nome foi anunciado junto ao de outras duas mulheres, nenhuma tão jovem quanto ela.

Era injusto que a escolhessem, protestou dentro de si. Ainda havia tempo. Mas não questionou, resignada ao seu destino. Ao menos finalmente daria aos pais algo do que se orgulhar.

Asta sempre foi muito menor que suas irmãs. Enquanto Bera, Edda e Adira eram altas e fortes, suas pernas longas, seus ombros largos e seus cérebros resilientes as tornando bons instrumentos para a Vila, Asta era frágil, baixa, de quadris estreitos. Uma a uma, viram seu sangue descer, suas habilidades e dotes reconhecidos, seus casamentos arranjados, seu valor provado diante do povo. Mas o tempo que as outras levaram não foi suficiente para que Asta estivesse madura, florida, pronta para ser polinizada e dar de volta à Vila o dom da vida que lhe foi proporcionado.

E agora, aos dezessete anos, seu prazo foi forçosamente encerrado.

Os homens do Prior a levaram até o altar circular, no centro da sala comunitária, e em sua cabeça foi depositada a coroa de cogumelos luminosos que selava seu destino.

Fingiu que as lágrimas eram de felicidade.

***

Na primeira noite de seu isolamento, Asta descobriu que nunca houve em si força necessária para sentir ódio de sua condição. Surpreendeu-se, mas não muito.

Quando aldeã comum, cada centímetro de sua energia era investido em estar acordada, estar em silêncio, ser imperceptível. Acreditava que se fosse invisível o suficiente, conseguiria cumprir seu tempo de vida sem causar tumulto nem desconforto, sem criar muitas expectativas. Ao completar treze anos lhe foi designado o papel de escriba, dada sua compleição apática, pois para algo tinha que servir. E ao descer-lhe o sangue seria certamente pareada com outro escriba, ou um tabelião, ou quem sabe um discursista; daria à Vila novos escribas ou tabeliães ou discursistas; voltaria às cinzas.

Mas a nuvem desse futuro se dispersou, e agora estava aqui, deitada na terra úmida, entre Abertha e Isolde, compartilhando um único cobertor. Encarava o céu estrelado enquanto as duas dormiam.

O período de preparo para a Recepção consistia em passar os dias escondidas do sol imersas nas águas termais e sulfurosas da caverna. À noite, deitavam ao relento sobre a grama, fosse tempo aberto ou não. Eram alimentadas com frutas, pão e vinho adoçado com mel. Não eram censuradas por conversar, mas não havia muito a ser dito. Uma delas seria parte d’A Mãe de Todas as Luzes; as outras seriam descartadas.

Asta tinha certeza de que não possuía a experiência ou o estômago necessários para vencer a etapa seguinte, e mais: provavelmente não o queria. Mas se houve alguma escolha dentro do seu destino, essa lhe foi tirada ao nascer na Vila, filha de pai carniceiro e mãe cesteira, a mais nova em uma família de mulheres e homens brutos adaptados à uma vida bruta porém justa.

Os Deuses da Colina garantiam essa justiça — a fartura nos tempos de seca, o frio terrível nos tempos de sacrifício, a vitória através das armas nos tempos de guerra. E quem era ela, com seu fôlego curto e sua visão embaçada, para contestá-los? Se a querem, pois então que a tenham.

Quiseram.

O dia da Recepção veio junto à última lua cheia do ano. A geada fina que cobria o matagal na saída da Vila derretia com o calor das tochas que, organizadas em um semicírculo, iluminavam os capuzes de tecidos cintilantes do Priorado. Entre eles, uma figura coberta de peles, os olhos selados por incontáveis camadas de cera e sebo. Saber que ali estava a Genitora encheu Asta de arrepios.

Com uma prece e um suspiro do público, a Genitora se despiu. A velha senhora tinha o tronco bulboso e encurvado, os braços alongados que terminavam em mãos de garra dispostos ao longo do corpo como uma boneca macabra, os cabelos muito pretos espalhados como um arbusto selvagem, o ventre distendido dos incontáveis partos que revitalizavam e mantinham o Priorado. A boca lacrada em uma costura tosca com linha de pesca. Deu os primeiros passos para dentro da mata, além do círculo de luz artificial. As mulheres foram despidas e comandadas a seguí-la.

A Procissão das Luzes, era chamado, porque seus corpos brilhavam sob a lua cheia como se bioluminescentes.

***

Perderam-se na floresta, sempre cinco passos atrás da velha que, cega, encontrava o caminho sem dificuldades, como se sentisse o rastro dos Deuses pela ponta dos dedos esticados. Encontraram-se n’A Colina.

Asta prendeu a respiração em susto. Lá do topo era possível ver o mundo inteiro que havia aprendido que existia mas sequer imaginava ainda estar de pé. Cidades ainda inteiras, com seus arranha-céus como dedos acusadores apontando para o Espaço; construções quadradas e estrebuchadas em concreto e aço; árvores mutantes crescendo entre suas paredes. Não havia mais fogo, chuva ácida, nem neblina corrosiva, como diziam os livros, mas seus efeitos ainda estavam lá. O registro histórico, por centenas e centenas de quilômetros, da misericórdia dos Deuses.

Os humanos foram dizimados. Mas a Vila permanecia.

Do outro lado d’A Colina havia uma chapada longa, descampada, habitada por círculos de cogumelos azuis. Asta posicionou-se dentro do mais próximo, como lhe foi instruído. E, como uma fada gigante e maléfica, a Genitora ergueu os braços de dentro de seu próprio círculo. Suas unhas longas e quebradiças reluziram como pequenas estrelas.

Foi quando os Deuses chegaram.

Asta nunca havia sentido um calor tão profundo e seco. Era como se o sol descesse ao chão, tocando sua face com raiva. A luz a cegava, mas não o suficiente para não perceber o que acontecia com a Genitora. A cera em seus olhos derretia, escorrendo pelo rosto e grudando os cabelos embaraçados. Com uma unha pontuda penetrou sua boca, rasgando as costuras e a carne. E quando abriu os lábios mutilados não havia ali voz ou língua, mas sim luz; e quando os restos da venda abandonaram sua fronte não havia pálpebras ou olhos, apenas mais luz. O objeto que cobria a lua e ateava fogo com sua presença se abriu, e a forma que saiu de dentro dele era disforme, alongada, protuberante, e luminosa.

Ouviu Isolde gritar. Ouviu Abertha chorando. A criatura, o Deus, inseriu o que parecia um de seus braços dentro da boca esgarçada da Genitora, e então outro, e então outro, como se tentasse vesti-la, testando o quanto aquele corpo poderia aguentar. Mas ela era velha demais, gasta demais e, como esperado, já não servia mais como invólucro para seu mensageiro. Rasgou-a em dois, e seu conteúdo se espalhou pelo campo como vagalumes. Então virou-se para Asta.

Deus tinha muitos olhos. Todos a tocavam, como que em apreciação. Sentiu seu pulso tomado, ouviu seu nome uma última vez, e foi ali que deixou de ser. Sua realidade se desligou, a privando da loucura do que estava para acontecer.

Sentiu a garganta invadida, a pressão esticando os músculos de seu pescoço ao limite. Sentiu milhares de vidas que foram vividas e ainda estavam por vir, povoando sua mente e germinando seu corpo. Um segundo braço penetrou seus lábios. E então não foi mais nada.

***

Os resquícios carbonizados foram recolhidos dos círculos de cogumelos e espalhados aos quatro cantos da Vila, em um velório solene. A Genitora foi encontrada sentada sobre as pernas no topo d’A Colina, como uma estátua. Rios de luz circulavam sob sua pele, pulsando — ainda levaria um tempo até que os tremores parassem e o corpo se tornasse estável. Ela foi coberta com suas peles, seus olhos e boca selados, então levada de volta para a Vila.

A semana foi de grandes festejos, regados a vinho doce e carnes sangrentas. O povo cantou, dançou, fornicou e rezou em honra à jovem desconhecida, ao Priorado e, principalmente, aos Deuses. Mais dez anos de trégua, de glória justa, de nascimentos divinos e vitórias, seriam derramados sobre eles.

A Mãe de Todas as Luzes vivia.

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(escrito em abril/20)

CASAMENTO MODERNO

Tomei um susto ao me ver frente a frente com Agnes novamente, depois de tão pouco tempo. Nunca acreditei que o ritual iria funcionar assim, fácil. Umas velas pretas, uns ditos em “latim”, uns sigilos em sangue e pronto, o que era um dia morto estava vivo novamente. A chance de falhar era tão gigante que nunca me preocupei de fato com o que aconteceria depois, e então de repente cá estávamos, cada um de um lado do círculo de sal.

Não que houvesse funcionado por completo. Idealmente, a alma do moribundo deveria ser capturada no corpo deitado no centro do círculo, de forma que pudesse desfrutar por inteiro sua nova chance. Mas, no caso em questão, a ressurreição foi incompleta, talvez pelas palavras mal ensaiadas ditas com língua presa, ou pelo corpo ainda estar meio congelado. E não é como se existisse período de estágio para rituais de magia negra — o que está feito está feito e que se lide com as consequência. Logo, o que vi na minha frente foi o resultado dessa falta abismal de experiência: uma existência falha, fantasmagórica, só uma névoa com cabeça, presa somente pelo desenho de convocação.

Se o plano era dormir de conchinha com o recém renascido, nem o mundo físico nem o mundo mágico haviam colaborado muito.

Podia ver nos olhos de Agnes sua aflição, passageira porém brutal. O brilho da loucura da morte era forte em seu semblante, mas tudo havia funcionado e estávamos ali novamente. Juntos. Então ela esticou os braços, controlada como sempre foi pela obsessão e delírio de quem merece o mundo. Se aproximou da borda do círculo. Foi quando pisou em falso e perturbou o sal, rompendo o lacre que selava o espírito dentro da área. Ao mesmo tempo o vento soprou forte, em vingança contra aquela perversão das leis naturais, escancarando janelas e apagando velas.

Aproveitei seu deslize e distração para, evaporado, vazar pela rachadura no círculo e desaparecer pela parede para o quarto.

Agnes gritou, furiosa, percebendo minha fuga. Escondido debaixo de uma cama qualquer pude ouvi-la bater as janelas, o ruído ensurdecedor do vento morrendo aos poucos. Tentei sair da casa, mas aparentemente as regras idiotas de como espíritos devem agir me impediam de me desgrudar dos elementos físicos que me representavam. E, querendo ou não, essa havia sido minha casa durante muitos anos. Uma existência miserável ao lado da mulher com quem casei, mas ainda assim uma existência.

Eventualmente, ela encontrou o cômodo no qual me escondida. Mas claro que não pôde me encontrar. Além de quase incorpóreo, uma cabeça flutuante é muito fácil de esconder no meio de dezenas de quinquilharias e caixas cheias de roupas velhas. Assisti enquanto ela primeiro vasculhava, então tocava um sino (mágico?), então fazia desenhos nas portas com o sangue de mentira que usou no ritual. Por fim, resignou-se a chamar meu nome.

— Por favor, Geraldo. — ela dizia em uma vozinha fina, chorosa, quase convincente. — Deixa de bobagem e volta pra mim. Sei que não te trouxe de volta da melhor forma, mas você está aqui, não? Ainda podemos ser felizes juntos.

 Mas não podemos não, de jeito maneira. Ha! Como se em algum momento tivéssemos sido.

 Passei os próximos dias me esgueirando pelos corredores como um fantasma. Às vezes ouvia Agnes me chamando, suplicando; outras vezes a encontrava trancada no escritório lendo livros embolorados e charlatões sobre como atrair, capturar, manter ao seu lado o homem de sua vida. Ela ainda acendia uns incensos, sacrificava umas galinhas, mas nenhum poder de que fizesse uso me afetava.

 O que me afetou, entretanto, acabou afetando-a também.

 Foi um dia qualquer de chuva e vento lá fora. Eu zanzava pelo corredor, seguro de que Agnes estava em qualquer lugar distante. Próximo à escada, parei apoiado no corrimão, observando o vitral feio que decorava a porta da frente.

 — AGORA VOCÊ NÃO ME ESCAPA!

 Atrás de mim, do outro lado do corredor, Agnes corria desvairada com um saco de linhagem na mão. Cada passo sacolejava do saco uma pequena nuvem branca, que suponho fosse farelo de tijolo ou cal, e que teoricamente me manteria preso.

 Ela não contou com o fato de que minha transparência e leveza permitia a mim simplesmente voar até o teto, evitando seu abraço, e foi o que fiz. Pega de surpresa, não conseguiu parar de correr a tempo e despencou escada abaixo, virando duas, três vezes e se espatifando sobre o carpete esverdeado da sala. Cabeça para um lado, tronco para o outro.

 Desde então, sigo prisioneiro de minha própria casa. Para falar a verdade, não é muito diferente do meu período de vida, exceto pelo breve período em que me senti livre. Assombrar cada quarto era divertido, mesmo sem plateia, e você ficaria surpreso em saber cada cantinho que as aranhas encontram para se esconder.

 Sei que minha liberdade pós-vida tem novamente seus dias contados. Do corpo de Agnes consigo ver uma fumaça tênue, meio branca meio esverdeada, erguer-se e tomar forma, lentamente. Primeiro uma perna, então outra, até ser uma cabeça miúda com nariz adunco. Sua boca em formação clama baixinho, “Geraldo” e “só meu”.

 Se ao menos a morte houvesse nos separado.

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(escrito em fev/20)

SÓ MAIS CINCO MINUTINHOS

Numa manhã, ao ser rudemente despertado de sonhos inquietantes, Gregor Samsa deu por si na cama transformado em um gigantesco inseto. Atormentado por um instante, tateou atrás do celular, apertou o soneca, e voltou a sonhar que era homem. 

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(escrito em ago/19)

 

SONHO AMERICANO

Mauro abriu os olhos e o despertador tocou. Seis da manhã, dizia o mostrador luminoso do celular. Deitado de costas, o peso das cobertas era como um casulo, e foi desse invólucro que se permitiu absorver os sinais de vida na casa, como fazia todas as manhãs.

Ouviu a esposa saindo do chuveiro, o som ligeiro do fluxo de água sendo interrompido. Sentiu o cheiro do seu hidratante misturado ao perfume cítrico. O filho chorou do berço, pedindo a mãe; a porta do quarto rangeu ao ser aberta.

O aroma forte do café passado e das torradas com manteiga veio da cozinha, assaltando os corredores. O som da TV era abafado pelo filho rindo e pelo tilintar das chaves do carro, presas à sua mãozinha, sacudindo pra lá e pra cá. Não viu o sol entrando pela janela estreita sobre a pia, mas pode senti-lo.

O despertador tocou novamente. Seis e meia da manhã, o último horário em que podia sair da cama sem estar mais atrasado para o trabalho do que de costume. Se despiu das cobertas e jogou as pernas para a beira do colchão, pousando os pés na pilha de roupas do dia anterior. As vestiu, calçou os sapatos, se dirigiu à cozinha.

Mauro encheu sua caneca de Dia dos Pais de água e ajustou o tempo no micro-ondas — dois minutos. Quebrou o jejum com café instantâneo e o último cigarro do maço. Sentado à mesa, observou sem ver a louça minguada para lavar, as embalagens de tele-entrega sobre a bancada, a sala de estar sem móveis.

Franziu a testa por um instante ao girar a maçaneta da porta da frente. Mas, dispersando o devaneio com um balançar de cabeça, só saiu da casa, trancou a porta, e se dirigiu ao ponto de ônibus.

As cortinas das janelas permaneceram fechadas. 

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(escrito em out/19)